FERNANDO PESSOA E A DITADURA
Acompanho, na íntegra, as considerações sobre ditadura, liberdade e mal menor que FERNANDO PESSOA teceu na época dele. Bem sei que a Esquerda gosta de reclamar a obra Pessoana como uma herança natural do colectivismo, mas obviamente que a realidade histórica foi outra, muito diferente.
Gosto do pensamento político de Pessoa, porque se baseia na liberdade individual como o Grande Valor e assume um pragmatismo total tendo em vista a garantia, a final, dessa liberdade. Se hoje fosse vivo seria tratado como um ultra-liberal.
Aqui vai, para reflexão daqueles que sabem pensar:
"O argumento essencial contra uma ditadura é que ela é ditadura, isto é, que é ilegal. O apresentarem os seus governos obra melhor, em um ou todos os sentidos, do que os governos legalmente constituídos não diminui a sua ilegalidade. Um homem que matasse outro voluntariamente, sem razão nem provocação, não pode esperar que lhe conte como atenuante — nem como tal lh'a contarão — que esse outro era provadamente um elemento daninho, que mais útil é morto do que vivo.
Uma ditadura, apesar de ilegal, pode ser todavia justificada pelas circunstâncias, quando num país é tal o estado de anarquia, governamental ou social, que se torna impossível a vida da legalidade. Entre um estado de guerra civil, real ou latente, e um governo de força, por ilegal que seja, que coíba essa anarquia, nenhum homem de recto critério, por liberal ou democrata que seja, hesitará em qual apoie.
Sucede porém que até o ilegal, se quer que o consideremos justificado, tem que obedecer a certas normas, isto é, tem que ter, em certo modo, uma legalidade sua. Ora uma ditadura, justificável somente quando não há escolha entre ela e a anarquia, existe, por isso mesmo, só para pôr fim a essa anarquia. O seu papel é portanto limitado à manutenção da ordem até que a anarquia desapareça; desaparecida esta, está findo o papel da ditadura. Se a ditadura não consegue dominar a anarquia ou o espírito anárquico, é que o fenómeno anárquico entrou fundo de mais no espírito da sociedade, e então há uma crise profunda, que, por profunda, nenhum governo, de força ou não, pode debelar. Ou é o fim do país ou, para que este se salve, não há outro remédio senão deixar que a anarquia continue e d'ela saia, pela aprovação de leis naturais e sociais que ninguém conhece, a lenta e dolorosa salvação. E, quando um país está neste estado, a existência do governo de força não terá feito mais, pelas várias reacções que provoca do que ter aumentado essa anarquia. Terá sido, afinal, apenas um elemento anárquico a mais.
Sendo o papel da ditadura limitado à manutenção da ordem, o governo de força tem todavia que empregar-se também na resolução de problemas correntes, pois que o Estado não pode deixar de ser administrado. Aqui, porém, deve a ditadura limitar-se a um papel rigorosamente administrativo. É a ditadura, por assim dizer, a suspensão do legislativo pelo executivo; não é a substituição do executivo ao legislativo. Uma ditadura não tem pois que fazer leis. E, na proporção em que, saindo do seu justo papel, as fizer, nessa mesma proporção criará novas inimizades, novos descontentamentos. Por uma parte, não há lei que agrade a toda a gente, e assim cada lei faz o seu grupo de descontentes, que poderão ser muito diversos de lei para lei, de sorte que, somados, esses descontentamentos vão formando lentamente uma atmosfera de descontentamento geral. Por outra parte, o homem ama naturalmente a liberdade, pois ninguém gosta de ser mandado nem se sente grato por imposições que se lhe façam, de sorte que os governos de força (a não ser que os envolva um misticismo qualquer) são tendencialmente antipáticos a toda a gente. Segue que o descontentamento contra uma lei promulgada por um governo de força é naturalmente maior do que contra uma lei de um governo de opinião. E o não ter havido oportunidade de se discutir essa lei dá ao descontentamento um apoio francamente justo e racional."
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes), 227, Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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