quinta-feira, abril 30, 2009

CONTO PROLETÁRIO

"Sou orfão de Pai e Mãe desde os cinco anos de idade. Recolheu-me uma vizinha, de preto, velha de inquantificável idade, que vivia num prédio a ameaçar derrocada pela trepidação da recolha do lixo em dias alternados. Aliás, a viela era tão desprezível que só a carreta do lixo condescendia em resvalar no empedrado puído da calçada. Comíamos, cozidas na àgua aproveitada da boca de incêndio, as cascas de batata recolhidas nas traseiras de uma pensão-residencial de uma estrela, A Primorosa de Alpalhão, que anunciava os seus serviços com a frase publicitária "casal que venha à cidade, águas correntes, quentes e frias, TV, ventoinha, bidé francês, massagens libanesas e outras". Aliás, muito adiantada para a época. Aquelas cascas de batata tinham grande procura e aceitação na nossa viela, já que a cozinheira, também parteira clandestina, para além de uma surpreendente capacidade de resistência etílica e de uma faca romba, tinha problemas de visão, produzindo cascas bem grossas. Problemas de visão, de resto, que a conduziram à prisão, pois que convencida de estar a ajudar ao parto de uma promíscua freira da Congregação das Irmãs do Santo Gemido, tentou cortar o cordão umbilical em causa e só os gritos horrendos do Senhor Cónego Almerindo - ausente da Secretaria da Sé em parte incerta havia dez dias, pois que acolhido à Lola e à Lila, duas espanholas que encetaram no nosso país o ciclo dos shows lésbicos ao vivo -, percebeu que afinal estava a sarrafar o sagrado apêndice do venerando presbítero. Tentou a parteira argumentar com o MMº Juiz, transmontano de gema, que a culpa pela confusão fora toda do Senhor Cónego que, sem dizer água vai, se colocara em posição de parturiente, de batina arregaçada à cintura e de partes pudengas à mostra, sem que volume ou dimensão permitissem evitar o equívoco. Mas o Senhor Cónego, instado, esclareceu os causídicos, exemplificando, que a referida posição se destinava a propiciar um número em que a Lola se especializara. O reboliço na sala foi grande e o escândalo dias depois ainda maior, pois o MMº Juiz não resistiu à sugestão transformada em cisma e acabou por fugir para Africa com a Lola, da qual veio a ter seis filhos varões, dois deles mulatos.
Quem se tramou foi a parteira que apanhou dois anos de clausura pelo crime de ofensas corporais na alínea da privação de orgão importante. E nós próprios que perdemos tão suculentas casquinhas. Salvou-se o Cónego Almerindo que ingressou, apesar de cerceado rente de tentações, no Instituto das Religiosas da Santa Preterição onde acabou a sua carreira monástica como Madre Superiora, depois de vários anos como responsável pelas confecções e costura da congregação.

A época da Primavera era boa. No sazonal charco que se formava nas fundações do novo Centro de Saúde, suspenso na construção por falência do construtor havia oito anos, caçávamos rãs que fritávamos na manteiga que sobrava do tabuleiro do pequeno almoço de um abastado proprietário alentejano que mensalmente visitava a Primorosa, fechando-se no quarto - o número 12 - por três dias consecutivos com um adido de embaixada do Ministério dos Negócios Estrangeiros de apelido Roto, e que nós tratávamos carinhosamente por Adelina. Acompanhava com cascas - as tais - salteadas. Pelos sete, oito anos de idade aprendi a caçar gatos com um cordel plástico gordurento de nafta que salvei à maré, empatado num anzol que feliz e ocasionalmente foi descoberto devido ao engasganço da velha num jantar de arroz de carcaça e miudezas de corvina que sobrara dos filetes da Primorosa. Logo à primeira garfada a velha entupiu, os olhos explodiram, as lágrimas transbordaram, as faces escaldaram. Choveram o que tens ?, palmadas nas costas, copos de água, benzeduras apressadas, rezas enigmáticas, até houve quem, à falta de método mais eficaz e em completo desespero, tivesse coçado o cú num misticismo nunca cabalmente explicado ou antes visto. O pânico era geral. Mas a velha meteu a mão à goela e, num arranque, trouxe na ponta dos dedos o famigerado anzol ainda com o pedaço de sardinha que tentara a corvina. Mas esse jantar ficou verdadeiramente célebre porque a velha, sempre tão calada e taciturna - fazia-se passar por muda por causa da esmola e nunca falava para não perder o jeito -, não se conteve e exclamou: "Foda-se, que me ia engasgando".
Foi com as peles pretas dos felinos, meticulosa e pacientemente raspadas e curtidas, que cosi o meu primeiro par de cuecas. Eram um bocadinho ásperas, mas eram negras - e o preto é a cor da sedução. Com o andar do tempo e com o uso, a confecção criou um muito ligeiro, vago, distante, quase-imperceptível odor almiscarado, o que tanto bastou para que a vizinhança, implacável, me tivesse apelidado de Almíscar. Mais tarde quando assentei praça, o sargento-mor de cavalaria que era um velho frequentador da "Primorosa" - onde se deslocava diariamente para fazer a contabilidade à mulher -, reconheceu-me, condoeu-se, assumiu-se como meu protector, e adaptou para Amílcar que, ainda hoje, é o nome com que assino."
(continua)

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2 Comments:

Blogger pulanito said...

és um verdadeiro Andy Warhol da escrita..gosto do cheiro nauseabundo dessa viela...quase que tive de colocar a máscara anti-gripe mexicana de que me muni, antecipando a pandemia que aí vem.

12:38  
Anonymous Anónimo said...

Estava para me isolar por causa da gripe,mas antes passei por aqui...Olhó Nap!
Para a prevenção e cura ainda vai valendo a velha alquimia:"avinha-te,abáfa-te e resguarda-te".
O "tamiflu" da Roche não vai ser necessário,vais ver.

Mais um conto e ,desta feita, não vou arriscar prognóticos.
Mas cuidado com as más condições higieno-sanitárias de quem tem vidas mais escabrosas que as nossas.
Ferver bem as cascas,de preferência com as batatas agarradas,e lavar frequentemente as maõs.
E venha o Sol e o calor, e que se vá a crise dos emporcalhados com a gripe mexicana.
ups!

Ps:Nap tu não gostas das gajas de Oxiclista,pois não?Ainda bem!
És a reserva moral do grupo.O outro que anda nas castanhas de Marvão,nem pia.É muito suspeito,mas...

14:34  

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