terça-feira, julho 05, 2011

A LANCHEIRA DO INTERCIDADES

Estava-se na agonia do santanismo. Em plena campanha eleitoral que conduziria Socrates à primeira maioria. Tinha ido a Faro fazer um julgamento. Para baixo fui de Rede-Expresso e agoniado gramei toda a viagem com um jovem ao meu lado, daqueles que usam de noite e de dia os mesmos sapatos de ténis e que não percebem o acumular de bactérias fedorentes que paulatinamente se vão instalando. Para cima, optei pelo Inter-cidades da CP. Bilhete em 1ª Classe, para evitar as sapatilhas dos jovens. Na época passava nas TV's um anúncio sobre o Inter-Cidades para o Algrave, dirigido às famílias, pretendendo mostrar a qualidade de serviço CP. Após a partida, tive que abandonar a leitura perante a conversa em voz alta de um grupo de 5 homens que tinham chegado da Carruagem-Bar de Sagres na mão. A contra-gosto tive que gramar a conversa e percebi que eram funcionários da CP. Falavam das próximas eleições e um deles exigia "que lá fossemos todos deitar, para evitar que o Santana ataque os nossos direitos". Um outro, quilómetros à frente, revelava que só faltavam seis meses para se completar um período de inactividade de 3 anos que, segundo ele, era condição para ingressar na pré-reforma. Ele só queria que o não chamassem entretanto. Tinha 54 anos e, "estás a ver, já dei muito à empresa, está na hora de me encostar". Até que o comboio virasse a norte, foi parando em todas as capelinhas. Numa delas, entrou um velhote de boné rural, pelos seus 75 anos, cheirando a suor do campo, com uma lancheira metálica e um sacho com um cabo de metro e vinte. Acomodou-se em frente de um estupefacto casal de turistas estrangeiros, abriu a mesinha de apoio, acedeu à sua lancheira e sorveu com requintes assobiativos uma malga de esparguete, enquanto bebia pelo gargalo a sua 'ciganinha'. Após, sacou uma navalhita e descascou mesmo ali uma laranja que comeu, sorvendo ruidosamente os sucos mais rebeldes. Entretanto, os outros meteram conversa com o velhote e percebi que a respectiva viagem começara na véspera no Pinhal Novo, onde morava, para vir cá abaixo cuidar de uma horta que ele tinha "concessionada" em terrenos desaproveitados da CP. Trabalhara todo o dia e dormira numa arrecadação em madeira que lá tinha montada - "com o calor do trabalho, enrolei-me numa manta e só acordei hoje de manhã". Ainda aproveitara a manhã na horta e levava para cima o sacho que andava sempre consigo e que lhe fazia falta na outra horta que amanhava no Pinhal Novo.

Ora, o que se passa é que os Funcionários e Reformados da CP têm o direito adquirido a viagens ilimitadas em Primeira Classe. Eu pensava que era em Segunda Classe. Mas não. Isto tudo aconteceu em Primeira Classe. Não contesto o Reformado latifundiário das hortas, nem o arraial de cerveja, nem o ambiente de tasca onde eventualmente só faltava um chinquilho. Se calhar, nem me importava tão-pouco com as viagens gratuitas suportadas pelo deficit alimentado pelos nossos impostos. Mas nunca em Primeira Classe. Andava a empresa a gastar milhões em anúncios televisivos a promover um Serviço Turístico e os seus Funcionários montados naquele regabofe, sabotando, como é bom de entender, qualquer viabilidade digna àquele Serviço !


Claro que nunca mais arrisquei um bilhete de Primeira Classe na CP. Pagar quase o dobro para suportar uma situação daqueles, nunca mais. Sobretudo porque o barulho ambiente foi aumentando na exacta proporção das visitas à Carruagem-Bar. Lá pela latitude de Grandola peguei nos meus pertences e transferi-me para a Segunda Classe. Cheirava a chulé dos jovens que dormiam deitados nos bancos, mas não estava tão barulhento.


É por estas e por outras que Carvalho da Silva e outros arautos dos direitos adquiridos me são tão desprezíveis. Os direitos pelos quais eles andam a ameaçar com greves e com agitação pública não são os direitos dos jovens licenciados e outros que só arranjam trabalho nos call-centers. Não, as greves de Carvalho da Silva são pela manutenção dos direitos destes trabalhadores da CP, e da Transtejo, e da Tap, etc.


Isto passou-se à minha frente e não foi na Roménia ou no Afeganistão. Foi numa carruagem de Primeira Classe do Comboio Inter-Cidades da CP.