HISTÓRIAS -III
(...continuação)
"Passaram ao guarda-roupa. Asdrúbal andava sempre de jeans, camisa de flanela e blusão preto de cabedal. Após exaustivo e renhido debate, concluíram que aquela roupa não era digna de uma professora primária. Adivinhavam que ela aceitaria Asdrubal mesmo de fato-macaco ou em cuecas. De preferência sem elas. Mas era uma professora primária, símbolo de respeito na terra. Por isso decidiram que Asdrubal devia apresentar-se de fato inteiro. Não de fato escuro, solene em demasia, mas numa cor alegre e jovem que ligasse bem com o seu tom de pele e transmitisse frescura e leveza.
Definido o conceito, compraram revistas da moda. Fizeram recortes. Discutiram acaloradamente. Finalmente, chegaram a consenso perante um modelo azul-marinho envergado com natural elegância por um fulano no convés de um iate de copo na mão. Sim, senhor. Asdrubal era alto, era elegante, estava habituado a segurar o copo, só lhe faltava o fato e o iate para encarnar aquela sofisticada personagem. Aquele fato era o ideal. Definitivamente. Foram de propósito a Lisboa. Correram as lojas da Baixa. A Rua dos Fanqueiros, a Augusta, a Aurea. Mas não encontraram aquele específico tom de azul-marinho. Decidiram recorrer ao Faustino. Em tempos o Faustino fora do grupo, mas deixara a boémia por causa da loja do pai. Tinha que abrir a loja diariamente e não se podia deitar tarde. Ao sábado de manhã, visitavam-no quando chegavam da noite. E brincavam com ele. Do maior ao mais pequenino, compre no pronto-a-vestir Faustino. O trabalhador, saudoso de chegar àquela hora a casa e tolerante com a irreverência dos amigos numa compreensão do bafo pesado, apenas pedia com responsabilidade profissional para não dizerem a graça em frente às empregadas. Ele era o patrão e não podia admitir públicas faltas de respeito.
Conhecedor, o Faustino advertiu que seria difícil encontrar aquela cor. Que raio de ideia, tanto fato decente que ali tinha para vender e tiveram logo que escolher uma cor daquelas. O mais que podia fazer era telefonar para os fornecedores, a saber da existência pouco provável dum fato azul-marinho. Se calhar só por encomenda. Uma semana depois, Faustino tinha a solução. Sempre fora competente e desenrascado. Havia uma pequena fábrica em Santiago de Riba Ul, concelho de Oliveira de Azeméis, que garantira ter aquele padrão. Enfim, presumia-se que a cor era a mesma já que a explicação telefónica era sempre contingente. Tinham fabricado uma encomenda de dez fatos e sobrara um. Se quisessem, pedia-se à consignação para ver se servia. Dois dias depois, o fato estava na loja do Faustino. O tom não era exactamente o azul-marinho pretendido. Era mais aberto, mais claro. Mas enfim, já era tempo de se tomarem decisões. Não podiam começar de novo a busca. Convocaram Asdrubal. Ele compareceu sem saber ao que ia. Reagiu que nem pensassem. Não só não iria ao Baile de fato inteiro, ainda menos naquela figura apaneleirada. Os amigos insistiram, mostraram-lhe o recorte da revista, garantiram que ele iria muito bem posto, muito moderno. Salientaram que até os gajos com iate se vestiam daquela maneira. E recordaram que uma professora primária estaria à espera que o seu namorado não fosse exactamente o zé-da-esquina, mas alguém que se evidenciasse, embora discretamente, pelo seu moderno bom-gosto. Vocês acham ? perguntou Asdrubal esperançoso. Todos acharam convictamente. E ficou decidido.
Faustino, habituado, ajudou na marcação das bainhas das pernas e das mangas. Meteram dois centímetros para dentro no gancho das calças para realçar a virilidade, à toureira, e cinco centímetros na costura das costas para evidenciar os ombros largos de Asdrubal.
A costureira do Faustino no dia seguinte tinha a obra pronta. De sua iniciativa reforçara os enchumaços nos ombros. Compareceram entusiasmados para a última prova. Assentava que nem uma luva. Mas o Asdrúbal, seguramente por falta de hábito, não se sentia confortável. Alvitraram que deveria andar com o fato um dia ou dois para se ir habituando. Os fatos eram como os sapatos. Só o uso lhes dava a forma, garantia a opinião experiente de Faustino. Asdrubal rendeu-se. Levou o fato para casa. E uma camisa branca.
Ainda tinha oito dias para o experimentar. Não tinha pressa, já que iniciar o uso significava assumir em definitivo a decisão e Asdrubal sentia um desconforto latente, uma sensação de perigo, como um aviso que os seus falecidos Pais lhe estivessem a enviar do outro mundo. Percebia que não era só a antecipação do esforço que teria de fazer no Baile da Pinhata, violentando toda a sua timidez. Havia algo de inexplicável na sua resistência à ideia. Por isso, foi atrasando a rodagem do fato. Tentou sossegar-se, convencendo-se de que o mal-estar lhe advinha do passo decisivo a que seria obrigado em prol da sua felicidade pessoal. Mas os olhos e as formas elegantes da professora valiam o esforço."
Definido o conceito, compraram revistas da moda. Fizeram recortes. Discutiram acaloradamente. Finalmente, chegaram a consenso perante um modelo azul-marinho envergado com natural elegância por um fulano no convés de um iate de copo na mão. Sim, senhor. Asdrubal era alto, era elegante, estava habituado a segurar o copo, só lhe faltava o fato e o iate para encarnar aquela sofisticada personagem. Aquele fato era o ideal. Definitivamente. Foram de propósito a Lisboa. Correram as lojas da Baixa. A Rua dos Fanqueiros, a Augusta, a Aurea. Mas não encontraram aquele específico tom de azul-marinho. Decidiram recorrer ao Faustino. Em tempos o Faustino fora do grupo, mas deixara a boémia por causa da loja do pai. Tinha que abrir a loja diariamente e não se podia deitar tarde. Ao sábado de manhã, visitavam-no quando chegavam da noite. E brincavam com ele. Do maior ao mais pequenino, compre no pronto-a-vestir Faustino. O trabalhador, saudoso de chegar àquela hora a casa e tolerante com a irreverência dos amigos numa compreensão do bafo pesado, apenas pedia com responsabilidade profissional para não dizerem a graça em frente às empregadas. Ele era o patrão e não podia admitir públicas faltas de respeito.
Conhecedor, o Faustino advertiu que seria difícil encontrar aquela cor. Que raio de ideia, tanto fato decente que ali tinha para vender e tiveram logo que escolher uma cor daquelas. O mais que podia fazer era telefonar para os fornecedores, a saber da existência pouco provável dum fato azul-marinho. Se calhar só por encomenda. Uma semana depois, Faustino tinha a solução. Sempre fora competente e desenrascado. Havia uma pequena fábrica em Santiago de Riba Ul, concelho de Oliveira de Azeméis, que garantira ter aquele padrão. Enfim, presumia-se que a cor era a mesma já que a explicação telefónica era sempre contingente. Tinham fabricado uma encomenda de dez fatos e sobrara um. Se quisessem, pedia-se à consignação para ver se servia. Dois dias depois, o fato estava na loja do Faustino. O tom não era exactamente o azul-marinho pretendido. Era mais aberto, mais claro. Mas enfim, já era tempo de se tomarem decisões. Não podiam começar de novo a busca. Convocaram Asdrubal. Ele compareceu sem saber ao que ia. Reagiu que nem pensassem. Não só não iria ao Baile de fato inteiro, ainda menos naquela figura apaneleirada. Os amigos insistiram, mostraram-lhe o recorte da revista, garantiram que ele iria muito bem posto, muito moderno. Salientaram que até os gajos com iate se vestiam daquela maneira. E recordaram que uma professora primária estaria à espera que o seu namorado não fosse exactamente o zé-da-esquina, mas alguém que se evidenciasse, embora discretamente, pelo seu moderno bom-gosto. Vocês acham ? perguntou Asdrubal esperançoso. Todos acharam convictamente. E ficou decidido.
Faustino, habituado, ajudou na marcação das bainhas das pernas e das mangas. Meteram dois centímetros para dentro no gancho das calças para realçar a virilidade, à toureira, e cinco centímetros na costura das costas para evidenciar os ombros largos de Asdrubal.
A costureira do Faustino no dia seguinte tinha a obra pronta. De sua iniciativa reforçara os enchumaços nos ombros. Compareceram entusiasmados para a última prova. Assentava que nem uma luva. Mas o Asdrúbal, seguramente por falta de hábito, não se sentia confortável. Alvitraram que deveria andar com o fato um dia ou dois para se ir habituando. Os fatos eram como os sapatos. Só o uso lhes dava a forma, garantia a opinião experiente de Faustino. Asdrubal rendeu-se. Levou o fato para casa. E uma camisa branca.
Ainda tinha oito dias para o experimentar. Não tinha pressa, já que iniciar o uso significava assumir em definitivo a decisão e Asdrubal sentia um desconforto latente, uma sensação de perigo, como um aviso que os seus falecidos Pais lhe estivessem a enviar do outro mundo. Percebia que não era só a antecipação do esforço que teria de fazer no Baile da Pinhata, violentando toda a sua timidez. Havia algo de inexplicável na sua resistência à ideia. Por isso, foi atrasando a rodagem do fato. Tentou sossegar-se, convencendo-se de que o mal-estar lhe advinha do passo decisivo a que seria obrigado em prol da sua felicidade pessoal. Mas os olhos e as formas elegantes da professora valiam o esforço."
(continua...)
7 Comments:
"Nota do editor: A referência ao Benfica é uma técnica para captivar a atenção para o próximo episódio."
Gato escondido com o rabo de fora,será?
Tenho ainda o defeito de ler os jornais e as notícias do fim para o princípio..."Aqui há gato",mas prometo ler toda a estória do Asdrubal de Caldas da Rainha(provável adepto do FCP).
ups!
ps.aconteça o que acontecer aprecio o estilo e vou acompanhando o "imbròglio"..."mas, aqui há gato".
é por estas e por outras que gosto de ser e que tu sejas meu amigo.
Então um prosador deste calibre anda escondido em posts de virar tripa quando tem o talento de prender o leitor.
Li os três episódios e fiquei com água na boca...até já estou do lado do Asdrubal, ou não será que existe dentro de cada um de nós um Asdrúbal escondido?
As gajas...é sempre a mesma cena...fazem-se esquisitas e depois um gajo é que tem de fazer figura de artolas para as sacar sabendo que dali a 20 anos serão um sombra (bastante maior) daquilo que um diaforam, quando se arranjavam, perfumavam, sonhavam e até bailavam...
É pá, que venha de lá o resto da estória do Asdrubal...que seguramente vai acabar a andar de bicicleta e a juntar-se à malta de Divor. É só um pressentimento...mas muito forte...
Nap,como qq benfiquista sabe o Asdrúbal(das Caldas da Rainha) só pode ser do clube do Carneiro,ou na pior das hipóteses do Manchester.
Sabes bem que eu sou do Chelsea...
ups!
Homem de pouca fé. O mais que poderia haver seria leão... nunca gato.
Vê-se mesmo que nunca andaste em bailaricos. O Nap identificou-se logo...
Porra, JM, a professora é que era formada em Caldas...
O Asdrúbal era de Portugal inteiro, até do Bombarral...
Tens razão:sou ruim bailador ...e "gato escaldado"..."costas largas"
ups!
Em A.dos Fernandes/Mértola,num desses bailes, 5 Asdrubal(es),perfumados e banhados de fresco....Ainda se via o 25 de Abril e os cravos ainda cheiravam.
Fomos convidados pelas 3 manas,anglo/lusas,da Mina de São Domingos.
Á entrada lia-se"Solteiros com Solteiras...Casados com Casadas".Belo jantar e as mães dançavam bem....e a malta gritava "AÍ Benjamim",enquanto o Sérgio Godinho cantava o "namoro".
ups!
Se o Asdrúbal é do Bombarral,venham mais ginjas!
ups!
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