sexta-feira, janeiro 15, 2016

O CLISTER OPACO (re-edição)


"António sentia-se fraco, lívido, com as mãos húmidas e frias. Estava em jejum e passara toda a noite acordado a caminho da sanita. Tinha sido a preparação para o exame que o deixara naquele estado de prostração sub-nutrida. Maldito purgante que lhe desfizera as entranhas em água suja. Ainda sentia no bigode o cheiro nauseabundo do rícino misturado com fragância de baunilha, utilizada para disfarçar o pestilento sabor no momento da ingestão do preparado. Por mais que tivesse lavado o bigode com sabonete, com pasta de dentes, com sabão azul e branco, até com shampoo anti-caspa e amaciador, o fedor mantivera-se. No bigode, mesmo por debaixo do nariz. Ignorar o pivete naquelas circunstâncias era como tentar dormir de olhos abertos. De manhãzinha ainda tivera que aplicar um clister de bisnaga, numa derradeira lavagem desajeitada que o molhara pelas pernas abaixo. Aliás, completamente inconsequente pois que o rícino já tudo havia exaurido. Enfim, mais lavado por dentro do que por fora, lá compareceu debilitado e enojado. Esperava encontrar o Dr. Avelar, o imagiologista residente, que já conhecia das reuniões do Conselho de Administração da Clínica. Mas surgiu-lhe pela frente uma enfermeira. Ou antes, uma enfermeiraça. Metro e oitenta de altura, ombros de halterofilista, braços de estivador, peitos abundantes a esgarçar os botões à bata, andar compacto mas elástico, cabeleira loura, boca e nariz severos, olhos azuis acinzentados, frios, metálicos e impessoais. Enfim, uma autêntica guarda nazi de um campo de concentração. Ou uma valquíria. Pelo menos nas imagens que hollywood incutia de tais personagens. Dispa-se completamente e vista esta bata, foi a ordem proferida em tom que eliminava qualquer hipótese de resistência. António obedeceu, meticuloso no pendurar da roupa, mas duvidoso se deveria também tirar as meias. Optou por as manter e vestiu a bata pelo joelho com a abertura e atilhos para a frente, cruzando as abas com as mãos a garantir a sua privacidade dianteira.A abertura é para trás, ouviu em tom de crítica. António corrigiu, humilde, culpabilizando-se por não ter discorrido tal evidência, mas sentindo-se ridículo e inferiorizado com a devassa do seu pudor na certeza de não controlar suficientemente a cobertura do traseiro. Bonito serviço, ainda por cima tenho que andar com o cú à mostra, começou António a irritar-se interiormente. Deite-se de lado na marquesa, dobre e junte os joelhos. António mansamente cumpriu. Respire fundo. Um súbito e aspirado ai escapou dos lábios do paciente. Percebeu que fora uma sonda quando um tubo foi ligado a um recipiente com uma massa branca, parecida com gesso. Viu o recipiente a vazar mas, ao contrário do esperado, não se sentiu a encher. Finalmente apareceu o Dr. Avelar. Bom dia, então, estamos confortáveis ? O médico tentou ser simpático no plural utilizado por médicos e educadoras de infância. Oh Dr., não me lixe. O meu amigo deve estar. Agora se eu soubesse que era para isto não me apanhava cá. Como quer que esteja confortável com um tubo enfiado no rabo... Respondeu António malcriadamente, exasperado com a noite insone e mal-cheirosa e receoso do futuro imediato face aos contornos que a situação estava a assumir.A valquíria inclinou a maca para um lado, para o outro, para a frente, para trás, enquanto substituía chapas que introduzia numa ranhura lateral do chassis da marquesa na zona do abdómen. Agora segure o tubo e não se assuste que é só ar. António segurou o tubo mesmo junto ao último reduto da sua masculinidade daquele modo posta em causa, garantindo que não se desenfiasse. Sentiu uma efervescência gasosa a borbulhar incomodamente revolvendo-lhe todos os meandros das entranhas. Mais umas chapas foram batidas. A valquíria tirou-lhe a sonda. Mas, ao contrário da esperada sensação de alívio, António sentiu uma terrível premência em aliviar os comprimidos gases. Apressou-se para o cabide da roupa para se vestir o mais rápido que pudesse. Mas a valquíria interrompeu o gesto. Espere cinco minutos, para ver se é preciso repetir alguma chapa. António pensou que ia morrer. Como poderia aguentar mais cinco minutos com aquele atroz sofrimento atrás, sentindo que a cada mexer de dedo, a cada movimento respiratório, a cada piscar de pálpebra, poderia explodir na mais humilhante e vergonhosa manifestação de imprudência social ? Concentrou-se num parafuso oxidado da marquesa, tentando abstrair de tudo o mais.Foram os cinco minutos mais longos da sua vida. Afinal, ainda teve que repetir duas chapas. Nessa altura já António transpirava copiosamente murmurando entre dentes, mas de forma inteligível - o que que isso lhe interessava naquela fase de desespero - o que pensava da medicina, dos médicos, das enfermeiras e de todos os algozes encapuzados que marcaram a ferro e fogo as páginas mais tenebrosas da história da humanidade. Finalmente foi-lhe autorizado vestir. Surpreendentemente, vestiu-se com relativas facilidade e rapidez. Só quando se dobrou para atacar os sapatos, percebeu que não aguentaria muito mais. Foi um momento épico. António naquele instante ultrapassou todas as fronteiras do domínio do corpo pelo espírito. Nunca até aquele momento outro homem, vivo ou morto, lograra vergar os sentidos ao poder absoluto da mente face a circunstâncias que ultrapassaram por larga margem os limites do humanamente suportável. Finalmente de roupa composta pronto para se acudir a uma casa-de-banho, verificou que estava sózinho na sala. Agora que mais falta fazia para prestar a preciosa informação é que a cabra da valquíria desaparecera. Raios-a-abrasassem. Abriu a porta em desespero e acedeu ao corredor. Deparou com um ser vivo - pessoa ou animal, não teve tempo de distinguir - que perante o seu ar inadiável nem necessitou que lhe fosse feita a pergunta. De imediato apontou uma porta a cerca de cinco metros. António pensou estugar o passo, mas compreendeu o risco. No podia alargar as pernas para não aliviar a pressão retentiva. Sentindo-se ridículo, arrastou o mais suavemente que conseguiu os sapatos por aqueles intermináveis 5 metros, movimentando as pernas com os joelhos colados, parecendo um pinguim, rezando para que não estivesse ocupada. Estava livre. Uf. Sentou-se, mas à primeira investida sonora equacionou a estanquicidade  da porta. Tanta gente a passar pelo corredor. E se o ouvissem ? Accionou o fluxómetro para que a enxurrada se sobrepusesse ao fragor, típico de uma alvorada festiva em arraial de aldeia. Nem assim confiou no isolamento da porta. E desatou num sapateado desenfreado, mais próprio de um ribatejano fandango. Irra, clisteres opacos nunca mais.
À saída encontrou o Dr. Avelar. Adeus, Avelar, espero que estejas satisfeito. Amanhã venho buscar o resultado. O Dr. Avelar num ligeiro franzir de sobrolho estranhou o tuteamento. Depois da intimidade por que passámos, com certeza não levas a mal que te trate por tu, vingou-se António sarcástico. E virou-lhe as costas a caminho dum pequeno-almoço. Daqueles com dois croissants com creme, dois quartos de leite gordo, um galão de máquina e uma torrada com pouca manteiga por causa do colesterol. E uma bica de café, para pôr a moral em pé."

3 Comments:

Anonymous Kruzes Kanhoto said...

Ora aí está...Mais um exame que devia ser abolido!

21:31  
Anonymous Anónimo said...

Um dos mais belos pedaços de prosa que li nos últimos tempos.
Já agora, re-edição do texto ou do exame.


Rui

16:11  
Blogger carneiro said...

Obrigado, não é para tanto. O texto foi reeditado. O exame - que não vai ser exactamente o mesmo - é para ganhar balanço....

21:54  

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