quarta-feira, março 05, 2014

O TRAUMATISMO UCRANIANO


Adiantando a conclusão, os Russos têm razão. E o Putin é um geo-estratega hábil, inteligente  e consequente.
A Crimeia sempre foi uma região autónoma - chegou mesmo a declarar a  independência - que foi absorvida pelo Império Czarista e, depois, pelo Império Soviético. Algures no tempo histórico do comunismo foi oferecida pelos dirigentes soviéticos à Ucrânia, numa daquelas atitudes em que os Senhores do Mundo  se permitiam fazer doações de Terras e de Povos uns aos outros.
Mas a Crimeia nunca foi ucraniana, no sentido político, social ou económico. Com a queda do comunismo no inicio dos anos 90, a Crimeia assumiu um estatuto de autonomia que lhe permitia ter parlamento e governo próprios, mantendo-se formalmente ligada à Ucrânia, apenas devido àquela  excêntrica doação entre repúblicas comunistas. Economicamente, a Crimeia vive da riqueza gerada à volta das bases militares russas. Bases de misseis e bases navais.  E do turismo, pois que herdou  da era comunista o estatuto de estancia de férias dos russos mais abastados. A Rússia condescendeu com a autonomia da Crimeia ligada à Ucrania, desde que lhe fosse garantida a utilização do território da Crimeia.
Sociologicamente, a Crimeia está povoada por uma maioria de russos. Entre trabalhadores das bases, militares e respectivas famílias, renovadas em vagas sucessivas durante dezenas de anos, a população russa ficou maioritária no território. Também porque na era comunista foram efectuadas deportações em massa que diminuiram a população não-russa.
Entretanto, a Rússia nunca teve problemas sérios com a Crimeia, pois que o Governo pró-russo da Ucrania sempre lhe garantiu sossego nas suas bases militares. E o ambiente social nunca foi hostil à Rússia, antes pelo contrário.
No momento em que o governo ucraniano deixa de ser pró-russo, Putin tinha que reagir na protecção das suas bases militares. Perante o amadorismo americano, Putin entrou, instalou-se, ganhou vantagem e   sentou-se  confortavelmente  à espera de  alguém que venha negociar. Que ele já cá está. Ainda por cima, Putin até pode invocar, e com verdade, que o Ocidente esteve a apoiar um golpe de estado inconstitucional e que ele apoia o legítimo poder Ucraniano. Essa matéria tem pouco a ver com a Crimeia, mas releva no argumentário diplomático.
Putin ignorou  as ameaças americanas - que  sabe serem inconsequentes, pois que já driblou  antes a retórica mole  de Obama  e Kerry não tem nada com que ameaçar -, nem ligou à União Europeia e apenas respondeu à Dona Merkel.  Adequou a sua actuação a dois objectivos imediatos: abrir negociações e negociar nos seus termos. Com quem quer e com as vantagens que teve o cuidado de obter previamente.
Até aqui Putin actuou quase-quase dentro da lei internacional. Em bom rigor ele não invadiu a Ucrania. Invadiu a Crimeia. E a Crimeia não é Ucrania. É uma coisa à parte. Que em breve será russa. E sem se disparar um tiro a sério.
Do mesmo modo que os portugueses não vão entrar em guerra com Espanha por causa de Olivença, ninguém entrará em guerra com a Rússia por causa da Crimeia.
E se a Rússia anexar em definitivo apenas a Crimeia  sem incluir o acesso pelo  corredor de Donetzk já não será nada mau para a Ucrânia. Porque naquela zona fronteiriça  também existe quem queira aderir à Rússia.
Um grande problema para o Ocidente seria se  a Rússia pretendesse a Crimeia para lá instalar bases militares de misseis e navais. Mas  as bases russas já lá estão instaladas, por isso para o Ocidente é irrelevante se a Crimeia fica autónoma ligada à Ucrania ou autónoma ligada à Rússia. A Crimeia vai ficar exactamente no mesmo local e com as mesmas bases russas instaladas.
No final disto tudo, Putin aparecerá como um paladino da legalidade, obterá pacificamente o reconhecimento dos óbvios direitos da Rússia sobre a Crimeia e reforçara a sua candidatura ao Nobel da Paz.  Obama já o recebeu por bem menos.

ACTUALIZAÇÃO: Parlamento da Crimeia aprova proposta de adesão à Rússia

Putin mexe de novo no tabuleiro. Deste vez com  uma jogada pesada e faz cheque ao Ocidente. Mais uma para o seu argumentário: Mas qual invasão se é o próprio poder crimeio legitimamente eleito que pede a adesão à Federação Russa ?  

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